Sobretudo o Mar

Ângelo descia a rua pelo rio, junto ao canal, lado a lado com aquela sequência de lojas de discos que tanto apreciava.
O breve sol primaveril havia já desaparecido por trás das casas de tijolo quente. As bicicletas arrumavam-se à entrada dos portões e cansados sapatos subiam os degraus de casa a caminho do fim-de-semana. À porta de casa, pais cumprimentavam os filhos e jovens esposas beijavam os maridos. As primeiras luzes acendiam-se nas janelas das salas e um fino fumo de jantar saltavam pelas chaminés.
Ângelo diminuiu o passo e olhou para o canal. Velhos barcos olhavam parados as águas do rio enquanto pequeninas ondas se formavam pela acção do vento. A calmaria de Ângelo parecia tê-lo adormecido naquela calma vespertina. Era tempo de acelerar passo.

Ângelo havia acordado já tarde neste dia e sentia que na verdade o corpo ainda não tinha abandonado aquele estado letárgico de protesto contra o despertar. Havia andado muito. Ou assim lhe parecera. Com a tarde livre, sentara-se a tomar o pequeno almoço às duas e meia da tarde. Abrira um livro e comera descontraidamente pequenos croissants com geleia folheados com uma meia de leite. O livro que abrira era demasiado pesado para aquele dealbar do dia e rapidamente pagou a conta e se levantou. Há algum tempo que não passeava pela cidade.

Do café do almoço derivou para a praça em caminhos sonolentos na expectativa de que a multidão habitual da tarde o ajudasse. Chegado ao mercado e ao início da praça, uma laranja fresca foi quanto bastou para ouvir descontraidamente o zumzum do dia. A visão tornou-se mais clara, os sons mais claros e o cheiro das flores invadiu-lhe os pulmões. Caminhou decidido a procurar aqueles pontos cardeais dos seus passeios.
Ao fim da praça a banca anunciava o mesmo de sempre: Poemas. Poemas fresquinhos, poemas antigos, poemas simples, poemas aos pares, poemas às dúzias. Poemas românticos, poemas marados, poemas modernos, poemas pintados. O vendedor de poemas era uma das suas personagens favoritas da cidade. Por vezes atrás da banca, de chapéu ao sol, caneta em riste, escrevinhando a sua mercadoria em cadernos de linhas azul, outras, de pé, no meio da praça, publicitando a sua actividade, os poemas que vendia, os sorrisos de namoro que provocava e sempre a cartola na palma da mão, os pequenos papéis dobrados, os poemas que em sorte eram lidos a duas caras pelos casais de turistas apaixonados.

Ângelo aproximou-se do poeta comerciante e estendeu-lhe a habitual moeda de 2 euros. Ao tilintar da moeda na mão, a cartola estendeu-se e Ângelo retirou a sua sobremesa:

Sobretudo o mar,
Nos teus peitos as ondas
E o marulhar nos nossos beijos.


A cidade pertencia a outros.
Ângelo tinha de ir ver o mar.

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