Perdida

Era naquela cidade aldeã que me perdia de mim. Enquanto todos os outros pareciam encontrar. Talvez não encontrar-se, mas encontrar. Alguém, alguma coisa, ou o nada que procuravam.

Eram poucos os momentos de clareza que me impunha enquanto me olhavam à espera de respostas novas, de decisões determinadas. E perdida, tinha uma imensa vontade de rir. De todos eles que me julgavam clarividente. Mas ninguém podia ver. As ideias velozes que gladiavam na minha mente. As confusões incoerentes que me apertavam os pensamentos. Nem eu as sabia. Reconhecia uma parte sem saber qual era. E eles não podiam saber.

Como um autómato de funções, eu continuava pela obrigação do que era justo, racional. E era no caminho de volta a casa, nas noites contínuas de incerteza, que eles apareciam. Para não me deixar descansar.

Nesta cidade da solidão, temia os loucos pela realidade que traziam. A minha semelhança.

Kisses

Stop kissing me like that.

Ele não parava. Beijava-me os olhos, a cara, os lábios, a boca. Molhava-me a pele com a saliva quente. E eu continuava a pedir: stop kissing me like that, I told you already. Stop it. You have to fucking stop that. Mas a excitação que sentia não o deixava parar. Ele não estava na cama comigo, mas na cama com alguém que não falava, na cama com o cliché que gostava de beijos. Tive que o empurrar, com força. If you don’t stop kissing me like that, I swear I’ll go away. Foram precisas algumas insistências mais para que ele parasse de me beijar com doçura.

Beijos de fazer chorar.

Il colore

Passados alguns minutos com ela, ele sabia que ela estava ganha. Ela tinha sido demasiado fácil, mas ele estava ainda interessado. Porque ainda havia umas coisas para fazer. E afinal ela era uma pessoa nova. As pessoas que ele conhecia eram todas tão cinzentas. As pessoas ficam cinzentas com o passar dos anos. Aborrecidas, desinteressantes e… cinzentas. E por enquanto ela ainda tinha cor. Ele, claro, tinha sempre cor. Ele era a cor. Ele era o arco-íris!

Mas ser sozinho tem pouca graça, mesmo quando se é em todo o esplendor. Quando se é jovem, bonito, convencido e cativante. E todavia isso tem sido, para ele, suficiente. Ser-se e gostar de se ser. Acima de tudo quando se é à semelhança daquela personagem desempenhada pelo Christian Bale no American Psycho que se olha ao espelho enquanto faz exercício para observar a definição exemplar dos músculos. E os músculos dele estão bem definidos. Ele vive para isso e para ganhar.

Mas ele pensava pouco em como gostava tanto de ser ele. Aliás ele pensava pouco, à excepção das actividades eminentemente intelectuais que tinha que desempenhar. Pensar não ajuda à definição dos músculos e não melhora o bem-estar, por isso é melhor não pensar. Podia pensar em coisas corriqueiras como a melhor maneira de desenvolver a situação que tinha criado com ela. Ele podia pensar nisso. Mas pensar noutras coisas era uma actividade non gratta que causava cabelos brancos. E os cabelos brancos são indubitavelmente indesejáveis.

Ele pensava quase tão pouco como ela pensava demais. Mas ainda não sabia disso no meio da conversa alegre e nada desinteressada que mantinham. E por isso ele via potencialidades naquele encontro. E isso fazia-o sorrir e rir, mesmo quando não havia nada de engraçado na conversa que continuavam. Era o (sor)riso de um predador. Ela tinha um ar pesado de medo e ele um ar desinteressado de interesse, mas ambos sabiam o interesse mútuo.

Ele já sabia como reagir a este tipo de encontros fortuitos e sabia que podia improvisar à medida que as coisas iam acontecendo. Era fácil. Ele percebia o interesse e começava a diminuir o espaço que dava à outra pessoa até ela estar encurralada e não havia outro final possível. As pessoas são, na maior parte dos casos, muito previsíveis. Um galanteio certo, uma mão no sítio certo, um sorriso irresistível et voilà. Ele procurava sexo, mas dizia-se um romântico tímido. Os estereótipos devem funcionar.

Mas ela era tão fácil que tornava tudo menos interessante à medida que ia acontecendo. Dava pouca luta, mas fazia perguntas difíceis e ele não queria pensar nas respostas a essas perguntas. Ele tinha que a despachar o mais rápido possível. Uma noite de sexo seria suficiente.

As noites

Noites e noites e noites. Sozinha, mesmo quando no meio daquelas pessoas. Elas não sabem nada. Posso sorrir quando estou com elas, posso rir, delas, com elas. E julgam que partilho as suas sensações. Consigo enganá-las sem sequer me esforçar.

Engano-as porque não posso correr o risco que percebam. As noites. Sozinha. A inevitabilidade. Não posso correr o risco das perguntas. Posso enganá-las com os sorrisos mas não as posso enganar com as mentiras. Disfarço apenas quando não perguntam, quando não exploram, quando não tentam.

Por isso finjo. Finjo interesse. Excitação. Empenho. Mas são todas manifestações vazias da marioneta que me dirijo. Consigo enganá-las.

Todas estas pessoas. Pessoas. Pessoas. Pessoas. Que dizem coisas sem sentido e vivem herméticas nas suas vidas com objectivos. Detesto-as porque me aborrecem com os gestos correctos, as acções controladas e horas de sono certas. Detesto-as porque me irritam com os descontrolos ocasionais, as vidas inconsequentes. E não se importam com isso.

Noites e noites. Sozinha. Quando ando pelas ruas acompanhada pelos fantasmas que nãos se vêem, mas que sei que me perseguem. Finjo. Finjo. Decisões e objectivos que me são indiferentes. E torno-me um deles para eles que fingem não me ver.

Noites. Só, entre os loucos.

Sobretudo o Mar

Ângelo descia a rua pelo rio, junto ao canal, lado a lado com aquela sequência de lojas de discos que tanto apreciava.
O breve sol primaveril havia já desaparecido por trás das casas de tijolo quente. As bicicletas arrumavam-se à entrada dos portões e cansados sapatos subiam os degraus de casa a caminho do fim-de-semana. À porta de casa, pais cumprimentavam os filhos e jovens esposas beijavam os maridos. As primeiras luzes acendiam-se nas janelas das salas e um fino fumo de jantar saltavam pelas chaminés.
Ângelo diminuiu o passo e olhou para o canal. Velhos barcos olhavam parados as águas do rio enquanto pequeninas ondas se formavam pela acção do vento. A calmaria de Ângelo parecia tê-lo adormecido naquela calma vespertina. Era tempo de acelerar passo.

Ângelo havia acordado já tarde neste dia e sentia que na verdade o corpo ainda não tinha abandonado aquele estado letárgico de protesto contra o despertar. Havia andado muito. Ou assim lhe parecera. Com a tarde livre, sentara-se a tomar o pequeno almoço às duas e meia da tarde. Abrira um livro e comera descontraidamente pequenos croissants com geleia folheados com uma meia de leite. O livro que abrira era demasiado pesado para aquele dealbar do dia e rapidamente pagou a conta e se levantou. Há algum tempo que não passeava pela cidade.

Do café do almoço derivou para a praça em caminhos sonolentos na expectativa de que a multidão habitual da tarde o ajudasse. Chegado ao mercado e ao início da praça, uma laranja fresca foi quanto bastou para ouvir descontraidamente o zumzum do dia. A visão tornou-se mais clara, os sons mais claros e o cheiro das flores invadiu-lhe os pulmões. Caminhou decidido a procurar aqueles pontos cardeais dos seus passeios.
Ao fim da praça a banca anunciava o mesmo de sempre: Poemas. Poemas fresquinhos, poemas antigos, poemas simples, poemas aos pares, poemas às dúzias. Poemas românticos, poemas marados, poemas modernos, poemas pintados. O vendedor de poemas era uma das suas personagens favoritas da cidade. Por vezes atrás da banca, de chapéu ao sol, caneta em riste, escrevinhando a sua mercadoria em cadernos de linhas azul, outras, de pé, no meio da praça, publicitando a sua actividade, os poemas que vendia, os sorrisos de namoro que provocava e sempre a cartola na palma da mão, os pequenos papéis dobrados, os poemas que em sorte eram lidos a duas caras pelos casais de turistas apaixonados.

Ângelo aproximou-se do poeta comerciante e estendeu-lhe a habitual moeda de 2 euros. Ao tilintar da moeda na mão, a cartola estendeu-se e Ângelo retirou a sua sobremesa:

Sobretudo o mar,
Nos teus peitos as ondas
E o marulhar nos nossos beijos.


A cidade pertencia a outros.
Ângelo tinha de ir ver o mar.

O som

Há qualquer coisa de inquietante em andar de metro às duas da manhã aqui. É uma incerteza de se encontrar alguém. Para além dos ratos impertinentes que passeiam ao mesmo nível das pessoas. Não como em Londres: onde os ratos sabem a sua posição: no meio dos carris dos metros antigos.

É quando se percorre as ruas vazias entre casas de pessoas que já dormem. São os sons que não há e as luzes que se escondem do escuro. Só o som dos saltos altos de quem procura chegar a casa indiscretamente.

Talvez fosse num momento destes em que podia aproveitar e negligenciar os receios empacotados no cérebro cansado e começar a falar sozinha. Mais do que trautear os sons que passeiam livremente em mim. Falar sozinha e repetidamente fazer movimentos repetitivos e ridículos que rasgam a normalidade de uma realidade que todos querem pensar real.

Mas não há ninguém na cidade boémia dos loucos.

Man on wire

Vê a sinopse do Man on Wire, esboça um sorriso, estende-se na cama a olhar o tecto. Desvia o olhar para observar a luz do dia a extinguir-se na janela.

Inquieta-se com a pressa das estações que passam por si como um vulto sem rosto, enquanto que ele vai permanecendo imóvel, expressão fechada, esperando que algo o arraste, o empurre, talvez para o conforto da multidão. Olha o tecto.

Contempla-se sobre o fino fio do tempo que acelera debaixo dos seus pés, a linha que não domina, que se perde no horizonte, que o atravessa para onde ele desconhece, digo, para quando ele desconhece. Fecha os olhos e imagina a sensação de desequilíbrio. Poderá haver equilíbrio? Tudo gera espaços de desconforto. A admirável vertigem coisas. Sobretudo das coisas “certas”.

Percepções. Sentidos. Pensa no que será, é, mais assustador: a noção de desequilíbrio ou a queda. O desequilíbrio, pois claro, porque age sobre a consciência. A queda é impulso, sangue, leveza.

Não percebe por que permanece ali, quieto, mudo, inexpressivo, com aquele ar de quem controla aquilo que lhe foge debaixo dos pés. À espera de qualquer coisa. Com medo de sentir medo. Talvez com esperança que algo o leve a algum lado, o empurre, o ampare, lhe estenda a mão. Algo que o desobrigue de criar e gerir o seu próprio desequilíbrio. Masoquismo desnecessário.

Ele tira os olhos do tecto. Já é noite à sua janela. O dia voltou a fugir-lhe.

Manifesto

Bem-vindos à Cidade dos Outros.

A Cidade dos Outros é uma novela gráfica escrita a 3 vidas.

Um ex-jornalista hippie transformado em yuppie gestor radicado no Porto revela as suas introspecções. Uma economista que sonhava ser estilista mostra o lado sensual e boémio de Frankfurt. Um fotógrafo de Évora revela as personagens de uma terra de passagem entre o Norte ocidental e a Arábia emocional.

A Cidade dos Outros pode ter mais vidas.

A de um eremita exilado na Ilha do Corvo. A de um filósofo de Lisboa que faz instalações com polímeros. A de um músico doido que faz playlists para cafés em Londres. A de um humorista de S.Mamede de Infesta que na verdade é de Leça do Balio onde há boas cervejas.

A Cidade dos Outros é uma obra de arte.

Presunçosa, incompreendida, exigente, convencida. É algo de novo e diferente. É alternativo, é vanguardista. Não serve para nada, ninguém gostará e não será nada de mais.

A Cidade dos Outros é um work in progress bloguítico.

Vive na rede. Alimenta-se das letras insanes da literatura. Mas também das imagens sensuais. Dos vídeos e da música. É todo um novo design literário que se constrói ao ritmo de Steve Jobs.

A Cidade dos Outros é uma novela.

Ao mais antigo estilo garreteniano. São episódios diários. Personagens que nos apaixonam e outras que detestamos. É um reality show. Na verdade o primeiro reality show de poesia. Onde antes de cada poema, o autor exibirá o nascimento do primeiro verso e o pormenor corporal desse parto. No caso, na folha de papel higiénico que agarrou, enquanto sentado na sanita.

A Cidade dos Outros irá provavelmente auto-destruir-se.

Mas não se apagará. Ficará gravada em pens. E se for boa, em mais do que isso. Mas a Cidade dos Outros não é estática. É energia de ondas. Podem ser estas ou outras. Toda a Cidade dos Outros pode ser mudada, a começar pelo nome – e o seu manifesto será o único de que não se guardará memória.

Bem-vindos à Cidade dos Outros.


 

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